quarta-feira, 14 de agosto de 2019

MEDEIA REVISITADA



Novamente na coxia de um palco. A mesma sensação dos nove anos de idade, ao penetrar no interior dessa fábrica rudimentar de realidades paralelas e fantásticas do teatro. O silêncio devotado às igrejas faz os próprios passos tornarem-se instintivamente leves para não perturbar a magia em curso. Na coxia, sente-se invisível, observa, voyeur-mor, como se fora uma grande angular a capturar dois mundos, palco e plateia, e suas interações e catarses. Pelo tempo do espetáculo será assim: estarão todos na última fronteira da imaginação humana, à beira do abismo particular de cada um, que se apresentará inadvertida e repentinamente no decorrer da peça.

Talvez tenha sido a necessidade de voltar a essa coxia que a movera a conquistar João. E agora, vitoriosa por alcançar sua meta, assistia a tudo o que o seu esforço tornou concreto e real. Eram dela a vida e a potência que animavam tudo o que acontecia no palco. Mas, em algum lugar, havia um desconforto, vindo de uma espécie de câmera invisível a filmá-la e, ao mesmo tempo, a questioná-la, tentando roubar aquele momento de glória e prazer.

Chamar-se Medeia era como ser predestinada a viver aprisionada numa tragédia, reencenada tantas vezes, a narrativa clássica da vingança feminina. A mulher que faz o homem, injeta nele sua genialidade, conhecimento de vida, potência e o transforma em herói, em profissional bem-sucedido, líder, grande artista. E justo no auge, no momento da recompensa, agoniza diante da rejeição por parte do ser amado, que prefere usufruir o reconhecimento ao lado de outra mulher, exatamente como João.

E o que é pior. Ninguém além dele sabe do seu valor e do seu papel naquele empreendimento de sucesso. Suprema traição conhecida apenas pelas mulheres que acreditam precisar se esconder atrás de um homem para exercerem sua potência realizadora e transformadora sem pudor. E, por não conseguirem reconhecer o próprio valor, reduzem a sua própria importância a conseguirem ou não segurarem o seu macho. Aí perdem-se completamente, como Medeia no mito grego, como se tivessem fracassado como ser humano ao serem trocadas por outra.

Não por acaso, a lenda de Medeia associa-se ao poder da imaginação humana em sua aventura criativa. Nela, Jasão é usurpado do seu trono, ainda criança, e adulto volta para retomá-lo do tio vilão, que o convence a realizar uma prova de merecimento da coroa, recuperando o bezerro de ouro, guardado no reino de Eetes. Jasão embarca num navio com os mais famosos guerreiros da época, conhecidos nesse mito como os Argonautas, e depois de  lutar contra monstros e inimigos, conquista seu objetivo, graças à ajuda da feiticeira e filha do rei Eetes, Medeia. Ela apaixona-se por Jasão e revela a ele o segredo que permite vencer o dragão que guarda o bezerro de ouro. Os dois retornam juntos para a terra natal de Jasão, mas logo após seu coroamento, ele decide casar-se com outra. Numa das versões da lenda, Medeia mata, por vingança, os filhos do herói com a nova esposa, enquanto em outras, ela elimina os próprios rebentos do casal, consumida pelo sentimento de injustiça e humilhação diante da paixão de Jasão por outra.

Toda mulher poderosa aspira a algum tipo de heroísmo cruelmente reservado aos homens em nossa sociedade. Mas as Medeias incorporam o modelo da realização por meio do amado e, ao se apaixonarem, transferem toda a sua força para eles, caindo na armadilha de acharem que essa potência nunca lhes pertenceu. Fomos ensinadas a enxergar a vagina como marca de fragilidade, e nunca de poder. Mas é dentro dela que a criação de fato acontece, desde o ato sexual até a gestação de uma nova vida, o verdadeiro centro do universo, escondido dos olhos do mundo.

Nesse ponto, o diálogo no palco corta os pensamentos de Medeia. E ela ri, distraidamente, e logo retoma o raciocínio, ao lembrar da deusa africana da criação - Odubaiá. Tão discreta na sua potência criadora, que ignora Oxalá e Ogum, em sua eterna disputa pela primazia sobre a invenção do universo. Faz o mundo porque pode e quer, e não se preocupa com a irrelevância dos homens a disputar quem criou o mundo. A ela basta manifestar o próprio poder e se nutrir do que realizou, sem precisar como Medeia da confirmação de seu poder refletida pelo espelho do reconhecimento do parceiro. Se é amada, sente-se plena, se não, sequer existe.

João tinha sido uma conquista longa, difícil, arrancada a fórceps. O problema é que quando ele suspendeu o véu de mistério do prelúdio da paixão e tornou-se um homem de carne e osso, no convívio, mostrou-se muito mirrado para o papel de herói que ela lhe destinou. Com as falas prontas e escritas por ela, com a luz favorável e o cenário perfeito, além do pleno domínio da técnica de interpretação, como estava agora, no palco, parecia mesmo o cavalheiro arrebatador, de ares libertários do começo. Mas agora ela sabia que a substância e a profundidade do personagem vinham do olhar dela muito mais do que dele mesmo.

De um parceiro capaz de trocas deliciosas sobre arte, no que ela tem de mais essencial que é ser metáfora da vida -  fio desencapado, a transmitir a eletricidade de existir de um ser humano a outro - passou a um autocentrado, ególatra, incapaz de enxergar além dos próprios interesses, alheio ao seu impacto nas pessoas e no mundo. Talvez porque completamente desconectado de si mesmo. Pior: medroso, pessimista, conservador, quase autista no funcionamento de sua personalidade obsessiva, como se o mundo só existisse para servi-lo ou para frustrá-lo. E como será que Medeia pôde, durante tanto tempo, viver ali, num encantamento tal diante daquele ator, como se estar perto dele pudesse representar uma possibilidade de alargamento do que ela conhecia da existência?!

Um intenso beijo na boca, no palco, preenche o ar do teatro agora. E, da coxia, ela enxerga a técnica dos atores de um lado, ao mesmo tempo em que sente na carne os suspiros na plateia, cada um  assistindo à sua própria cena de amor, ela inclusive. E as lágrimas fluem, afinal aquele deleite incrível da presença de João se dissipou completamente, fazendo voltar a solidão de outros tempos, e à impotência de ter que aceitar o limite do outro e suas escolhas.

Até quem sabe encontrar alguém que seja verdadeiramente maior que as fantasias de amor que projeta, e que no cotidiano mostre-se mais interessante e sedutor do que suas projeções, surpreendendo na experiência concreta do contato. De toda forma, não vale o desespero do gesto de Medeia, pelo menos não mais, felizmente, depois de tanta luta feminina. Ao menos, esse gozo cabe às mulheres de hoje. Que deixem seus falsos príncipes voltarem a ser sapos, como talvez tenham sido sempre até beijá-las.

Chega o ato final e ninguém mais respira no teatro, nem ela, tamanha a tensão provocada pelo desenrolar dos diálogos e da interação entre os atores. “Explicar a morte é fácil. Difícil é explicar o beijo”, a reprodução da célebre frase de abertura de Nelson Rodrigues em “O Beijo no Asfalto”, colocada ali, como fala final da personagem principal, uma mulher, encerra o mistério.  E a plateia, depois de uns instantes de silêncio reflexivo, de pé, aplaude até Medeia não ouvir nada mais, além das batidas alucinadas do próprio coração diante do reconhecimento que sim lhe pertence, muito além de João.



sexta-feira, 15 de março de 2019

VERDE E AMARELO



A Esplanada está novamente vestida de verde e amarelo para o desfile de sete de setembro. Entre o Pavilhão de Metas, sede do primeiro governo de Juscelino Kubitscheck, logo na entrada, e a rodoviária, passo por seis semáforos: o primeiro em frente ao Planalto, o segundo no Congresso, o terceiro no Palácio da Justiça, o quarto no Ministério do Exército, o quinto no do Desenvolvimento e o sexto no Teatro Nacional, chegando assim à encruzilhada dos eixos, descrita por Lúcio Costa em seu plano poético-urbanístico: “Monumental, não no sentido de ostentação, mas no sentido da expressão palpável, por assim dizer, consciente daquilo que vale e significa”.

Cada sinal vermelho, uma estação de reflexão, como a via sacra do calvário nas igrejas. “E qual o sentido e o valor de cada uma delas?”, pergunto-me neste alvorecer, ao refazer o trajeto percorrido tantas vezes desde pequena subindo a Esplanada dos Ministérios. Parece que ouço o rádio de muitos anos atrás, no banco de trás do Opala branco do papai: “No dia 15 de novembro, vai dar 15 para senador e 15 para deputado, todo número do PMDB começa com 15! É a vitória do 15, no dia 15 de novembro...”. Campanha eleitoral para a Assembleia Nacional Constituinte, e ele ligado em cada palavra dita no rádio, na televisão, na fila da lotérica, sobre a eleição tão esperada para escrever a Constituição. Lembro-me de sua pele vermelha ficar ainda mais inflamada, da voz subir exaltada, comentando cada lance como um jogo de futebol do Flamengo, seu time, no tempo do Zico.

O sentido do desenvolvimento é a marcha para o Oeste...”, escuto agora em alto e bom som, na rua deserta, a voz empostada de Getúlio Vargas, vindo do disco de vinil que meu avô botava nas alturas quando queria rememorar os discursos mais célebres da política, que ele sabia de cor e dublava, enquanto tocavam na vitrola. Eu chegava à sua casa, em meio àquela encenação tão particular da história brasileira feita por ele, talentosíssimo na arte de interpretar, e viajava no tempo e naquele heroísmo caseiro de quem escreveu o pedaço mais concreto e duro dessa história.

A verdadeira paz é obra da Justiça”, frase célebre do profeta Isaías que saía agora do túnel da memória da boca de minha avó, que entoava sempre “Justiiiça, Justiiiiça, Justiiiça...”, em tons bem agudos, quando se sentia prejudicada na vida. Nascida no mesmo dia de Luiz Gonzaga, o rei do baião, na festa de Santa Luzia, em 1913, fugia de casa, menina, para entrar escondida no cinema e ver o beijo na boca de Rodolfo Valentino com alguma atriz da época. Pornografia pura, segundo sua mãe, mulher muito rígida mesmo para os padrões de então.

Em Uberlândia, ainda menina, subiu numa árvore e ficou durante horas esperando o encontro entre Luiz Carlos Prestes, comunista, e Plínio Salgado, integralista, e seus seguidores, no centro da cidade, ou pelo menos assim contava sempre. Todos haviam se recolhido com medo de um confronto violento, as mulheres, então, não tinham sido autorizadas a botar nem o nariz para fora de casa, e ela, na árvore. “Queria ouvir os dois falarem, sabe? Sempre adorei ver gente que fala bem. Faz o coração da gente pular”, justificava.  “Terá valido a pena?”, penso agora, ao ver o sol nascer neste sete de setembro tão distante daquele encontro em Uberlândia.

“Ripa na chulipa, pimba na gorduchinha”, Osmar Santos, inesquecível narrador de futebol e do movimento das Diretas Já!, naquele ano de 1984, entra agora em cena no meu desfile particular. Vejo-me agora, no passado mais recente, dentro do gabinete do Palácio da Justiça, sentindo-me uma Mulher Maravilha, parte da equipe do primeiro governo de esquerda democraticamente eleito no Brasil. O peito de havaiano (no caso, havaiana), estufado, como dizia Nelson Rodrigues, para descrever o orgulho cívico adquirido subitamente pelos brasileiros após a vitória na Copa de 1958. Pena não ter naquela época a lucidez de hoje, neste passeio ao alvorecer.

E aí, é inevitável lembrar a frase célebre de um presidente, infame em seu contexto original, mas certamente muito apropriada para a reflexão do momento, no sinal vermelho em frente ao Palácio da Justiça: “O tempo é o senhor da razão!” E ainda bem que ele não para e traz sempre um alvorecer simbólico de recomeço, mesmo na capital do Brasil, neste ano de 2017 ou 216S, como preferem alguns.

Passo agora pelo Teatro Nacional, fechado há anos, e vejo que ganhou um estacionamento completamente reformado em frente à Sala Martins Pena. Na rodoviária, os moradores de rua dormem embaixo do cruzamento dos eixos e os trabalhadores e artistas de sinal se multiplicam. Se Lúcio Costa voltasse para ver o coração de seu projeto, 57 anos depois da inauguração, será que encontraria nele valor e significado?

Sigo subindo e descendo a Esplanada e procurando, em cada semáforo, encontrar algum sinal em meio a tantas divagações, ampliadas pelo turbilhão de acontecimentos políticos e pessoais dos últimos anos. Apesar de toda a frustração ao dirigir ali, neste alvorecer de um sete de setembro muito diferente do que sonhei, mantenho-me fiel à fé inquebrantável, como diria JK, dos pioneiros que construíram minha amada Brasília, entre eles meus queridos avós, neste Planalto Central, onde ipês amarelos, em sua majestade, saúdam, anualmente, a independência, alheios ao desfile surreal (para dizer o mínimo) da política e de seus personagens.


sexta-feira, 8 de março de 2019

O SEGUNDO ENCONTRO




As folhas das árvores arranham meu rosto, enquanto me abaixo para me manter na trilha. Apoio as mãos nas pedras ao redor buscando o equilíbrio. O sol brilha mais em alguns pontos do caminho e, pela sua altura no céu, chuto ser quase meio-dia. O suor escorre, mas um cheiro de água e o barulho que ela faz no ouvido me renovam. Antecipo a delícia do mergulho, cada minuto mais próximo. Anseio pelo choque térmico que parece parar o coração por um instante e depois o acelera até o relaxamento total. Imagino um sorriso conhecido e ansioso, como o meu, pelo reencontro.

Vejo-me frente a frente com ele, mas não encontro seu olhar. Vem o escuro e, em seguida, tudo se dissipa e sai voando por alguma janela.

Mente limpa novamente, o espaço vazio entre uma coisa e outra. Uma luz intensa parece entrar pelo centro da minha cabeça. Como se enxergasse a paisagem em volta de olhos fechados. Volto a atenção aos barulhos do entorno, “olha a mente-elefante querendo te pisotear, garota!”. Concentro. Respiro, inspiro, expiro, escuto. Abro os olhos e encontro a paisagem familiar. Agradeço com as mãos em prece à minha árvore favorita, ao céu e depois prego a testa ao chão, um gesto de poder extraordinário.  “O chão me sustenta em todos os momentos”, repito como um mantra ao final da meditação.

Pego o diário e começo a escrever, possuída por ideias que nem sabia ter. A primeira vez que seus olhos pousaram na minha nuca, ela ardeu. Faz tanto tempo. Depois lembro de um bar barulhento, em Santa Tereza, fim de tarde e um olhar luminoso da alegria do encontro genuíno entre duas pessoas. Era para ser um diálogo, ainda que sem palavras, uma troca fluida, uma despreocupação completa com a própria imagem perante o outro. Afinal, se há afeto, importa mais?

Tanta vigilância e regras milimetricamente calculadas roubam meu ar, turvam minha visão, enganam meus ouvidos que tentam encontrar a batida do coração colado ao meu, buscam o pulso exato, querendo decifrar o que se esconde atrás daquela barreira impenetrável. Não consigo. O ritmo do nosso próprio coração só pode ser lido quando a gente deixa.

Levanto a cabeça do registro por uns instantes, procurando as palavras e o sentimento para continuar a escrita. Quando imaginei o segundo encontro parecia simples, até estar lá e navegar com o próprio corpo: lembranças, sensações, expectativas, tocar com as próprias mãos nas árvores, pisar as pedras e experimentar na carne os ossos gelados.

A lua quase cheia, como querendo transbordar, vai ficando mais forte contra os tons de rosa e azul do entardecer de Brasília, em junho. Uma brisa leve, vinda do lago, lembra-me o desperdício do encontro ensaiado e não realizado. No último instante, resolveu não aparecer e mandou um emissário desconhecido com um recado torto, incompreensível. No meio do gramado, com a lua de testemunha, vestida de desejo e consciente de meus medos, dúvidas e angústias, cheguei a me sentir à vontade até com a minha própria fragilidade. “Isso é que é preparar-se para um encontro!” Estava orgulhosa do trabalho realizado para chegar àquele momento. Daí aparece um vulto que, de longe, parece o homem esperado. Mas quanto mais se aproxima, menos o reconheço. Essa imagem, desafortunadamente, não se dissipou. Ao contrário, revelou-se real a ponto de eu poder tocar com minhas mãos no muro erguido entre nós e na solidão do lado de dentro do forte, onde se protegeu, cancelando o encontro.







sexta-feira, 1 de março de 2019

A ESTRELA E O ELEFANTE


Parada no meio do terreiro de festa, Lilica ouvia, de um lado, o som da zabumba e da sanfona ensaiando e, do outro, um vento forte de manhã de inverno no sertão, tocando poeira fina em todas as direções. De repente, sente alguma coisa pregada na testa. Passa o dedo e vem junto uma estrelinha azul de papel brilhoso que nem sol de meio-dia. 

Imediatamente, passa tudo de novo. Noite da lua cheia mais enxerida da sua vida. Daquelas que chegam tão perto para espiar o que a gente está fazendo que dá vontade de pedir licença. Lilica até falou com ela, mas não adiantou, a danada continuou seguindo a menina. Esperou as seis irmãs, mais pai e mãe dormirem, e desceu pela árvore, que cresce junto à janela do quarto. Tudo com a lua espiando, interessadíssima!

Chegou pisando macio, igual ladrão profissional de galinha, que passa a mão e leva embora sem arrancar um pio das bichinhas. Procurou no pé da lona um buraco grande o suficiente para passar o corpo e entrou. Não calculou que ia adentrar justo atrás do picadeiro. Pior. O moço, motivo da aventura, estava justamente ali treinando. Pode? 

“Pelo menos aqui dentro a lua não pode espiar”, pensou, tentando se acalmar. 

Há uma semana não se falava em outra coisa na cidade. Em todas as bocas só tinha um nome: Vikruuuum, ou Víííkrum, dependendo. Mas era ele! O indiano que tinha vindo do outro lado do mundo montado num elefante, atravessado o sertão todinho atrás do pife perfeito para fazer parelha com sua cítara. Ou será citáara?! Lilica não estava bem certa. Aliás, tinha certeza de estar era muito errada, sem juízo, sem noção. 
E antes que pudesse dar meia volta e sair por onde entrou, deu de cara com ele. 

“Vixe, Maria! Só pode ser assombração! Bonito desse jeito!”, pensou Lilica, fazendo o sinal da cruz. E ele riu ao ver a menina se benzendo. E o som que saiu daquela boca desenhada e cheia de carne, fez cócegas dentro da orelha de Lilica e aumentou a confusão.

Quando deu por si, Lilica estava lá em cima, perto do céu de estrelas coloridas da lona do circo. O indiano era trapezista. O ombro forte e as faixas amarradas no punho não enganavam. Parecia saído de livro. Pulou no trapézio e começou a voar para cá e para lá, hipnotizando a menina. Aí, do nada, voltou para onde Lilica estava, mostrou o trapézio e ofereceu uma carona, apontando com o queixo para ele. 

V-E-R-T-I-G-E-M. 

“Só pode ser ela”, pensou Lilica.  “Ou será o P-R-E-C-I-P-Í-C-I-O da vovó, toda vez que passa numa ribanceira?” O indiano não é Vikruuum, nem Víííkrum, é Vertíiigeeem ou Precipíciiiiiioooooooooo. Não deu tempo de saber. O moço da pele maravilhosamente encardida, não dava tempo de pensar. Pegou firme na cintura de Lilica e a levantou até o trapézio. O calor das mãos coladas no vestido fazia mais cócegas que o macio da voz. Mas não deu para se benzer e o jeito foi agarrar firme no trapézio e, assim, voou com ele, no meio das estrelas. 

“Agora queria ver a lua enxerida espiando! Até que ia compor bem o cenário”, diverte-se Lilica, entregando-se completamente à sensação de vertigem, cada vez mais gostosa. 

“Ô menina! Tá fazendo o quê com essa cara de abestada no meio do terreiro?!”, grita a mãe. “Tá na hora de se arrumar!”

Lilica guarda depressa a estrelinha e se recompõe. Os convidados estão chegando, o som da zabumba e da sanfona se aproximando junto com um triângulo rápido que só. Ou será a batida do seu coração disparado?! 
Chegou a sua vez! Depois de esperar as seis irmãs mais velhas serem o centro da festa, finalmente seria ela a estrela, sim, a caçula, a cabeça-de-vento, mas ainda assim E-S-T-R-E-L-A. Corre para dentro e entra no vestido branco rendado por toda parte, a coisa mais linda do mundo. Põe o véu e pega o buquê. Vai começar o casamento na roça! Olha o noivo. Zizinho bem podia ser um indiano montado no elefante, trapezista, tocador de cítara. Pensando bem, podia ser muito mais, ensaia, rindo, depois de notar uma estrelinha azul se divertindo pregada no meio da testa dele. 



    

sábado, 23 de fevereiro de 2019

INVESTIGAÇÃO INTERNA


Busca em cada janela aberta no computador em frente a resposta. A investigação começou lenta, sem evidências contundentes que formassem um rastro a seguir. Do enquadramento do crime ao sujeito oculto que movimentava a história, havia buracos e lacunas por toda parte, desafiando Jordana.
Nem a cronologia exata dos acontecimentos estava estabelecida, depois de quase um ano. Dormia montando os eventos em sua cabeça numa ordem e acordava certa de que não se encaixavam daquela forma e embaralhava tudo novamente, buscando algum sentido escondido naquele conjunto de informações e observações esparsas: fatos, frases, datas e personagens que não resultavam numa teoria minimamente aceitável.
Uma manhã de passarinhos alvoroçados na janela e cheiro de chuva no ar parecia perfeita para uma tarefa assim. Toda sua vida dependia daquela resposta e, embora tivesse se enganado muitas vezes, intuía a proximidade da revelação esperada e libertadora.
Em seus romances policiais favoritos, os detetives guardavam um traço comum – uma espécie de desajuste social os fazia perceber o entorno como algo ao qual não pertenciam completamente, muito em função da contundência de seu mundo interior, mais importantes para a narrativa e a elucidação dos casos do que a própria realidade. Nessas histórias, a verdade se escondia no entendimento da subjetividade dos envolvidos e não em provas, evidências e fatos dos inquéritos, meros coadjuvantes.
Jordana começara sua carreira de investigadora sem se dar conta. Uma curiosidade inata e um faro fino para a camada menos rasa dos relatos e das pessoas ao redor, onde o mais interessante de qualquer trama ou personagem costuma morar, levaram-na ao aprimoramento de uma espécie de sexto sentido. Algo que, com bastante treino, tornou-se um exercício permanente de lógica dedutiva diante dos acontecimentos mais banais.
Segundo a Biologia, descobriu, existem dois métodos científicos principais: a indução e a dedução. O primeiro parte de uma série de observações sobre um mesmo fato para, ao final, produzir uma conclusão baseada exclusivamente nelas. O segundo tenta explicar as coisas a partir de uma coleção de eventos que levam necessariamente a uma conclusão. A principal diferença entre eles está na possibilidade, na indução, de uma série de observações verdadeiras gerarem uma conclusão falsa, o que é impossível na dedução, onde só uma hipótese verdadeira pode gerar uma conclusão do mesmo tipo.
Isso cria espaço na dedução para o exercício da criatividade, da intuição e da experiência pessoal do investigador, obrigado a formular e reorganizar teorias durante todo o processo de trabalho até encontrar a hipótese certa e, a partir dela, a resposta. É muito mais a arte da interpretação da realidade e das pessoas do que da coleta metódica de um grande volume de observações.  
Por isso mesmo, um olhar afiado sobre um detalhe ínfimo conecta, inesperadamente, todos os pontos da história e traz a certeza do que se passou, mesmo antes das provas confirmarem a sensação do investigador. Certamente um dos trabalhos mais desgastantes que podem existir, sobretudo quando o método pressupõe a existência de conexões diretas entre os fatos em volta e o mundo de dentro onde habitam crenças, sentimentos, experiências e histórias que inevitavelmente estarão na base de cada hipótese formulada. Uma dinâmica clássica de transferência e contratransferência, diria a psicanálise. Com uma diferença fundamental: o sentido a ser encontrado não pertence a quem investiga, mas ao outro, o investigado, protagonista dos fatos.
As fotos dispostas em intervalos regulares na parede em frente à cama de Jordana, agora, reclamam um enredo minimamente verossímil e a tiram das divagações sobre seus romances policiais favoritos.  Coloca, então, o laptop de lado e concentra-se. O mesmo casal, em diferentes poses ao longo dos anos – aniversários, casamentos, viagens, momentos de lazer, encontro com amigos. Nenhuma imagem negativa ou que denuncie falta de sintonia ou de parceria. Até mesmo uma felicidade com lampejos daquela paixão com sabor de fruta mordida do Cazuza podia ser percebida.  O crime rompia o padrão – eis a única conclusão possível, a partir daquele painel. Mas é tão pouco?! Desespera-se.
Fecha os olhos e escuta as vozes colhidas em diligências diversas, ao longo do tempo. Deixa a mente vagar por trechos de mensagens trocadas pelo celular, e-mails e busca, atentamente, o detalhe que aponta a identidade do criminoso. O casal não existe mais, esse é o fato. E como fazer justiça à dor desse fim? Como se saber pudesse reparar, quando nem sempre é assim.
Tentava agora estabelecer o ponto de inflexão, o momento exato no qual Luís tinha mudado. Deixado de ser aquele homem mostrado nas fotos, quando começou a sumir. Talvez tenha sido alguém novo do trabalho. Afinal somos todos obrigados hoje em dia a compartilhar a mesma baia, em computadores dispostos lado a lado, nesses ambientes da moderna arquitetura nos quais privacidade virou crime. Se quiser falar sem ser ouvido por todos os demais colegas, vai sentar no corredor da escada de incêndio.
O único refúgio desse mundo de vigilância obrigada de todos por todos é um fone de ouvido com música, no máximo. Como não entrar na vida alheia que vive se esfregando na sua cara, mesmo contra sua vontade mais genuína de se distanciar e respeitar limites? Revoltava-se agora, ao imaginar como o criminoso poderia ter sido empurrado a fazer algo que nunca desejou ou buscou conscientemente.
E quem não se apaixonaria por Luís? Talvez no meio da multidão do Carnaval não fizesse muito sucesso. Pequeno, discreto, apesar de altamente magnético de um jeito tímido, despachado e misterioso, ao mesmo tempo. Mas as distrações ao redor e o torpor do álcool na cabeça certamente borrariam aquela imagem e toda a sedução que ela emanava de perto. A questão é que de perto, como diria Caetano, ninguém é normal.
Começa a sentir uma ponta de dúvida sobre a existência mesmo de um crime. E a mera admissão dessa possibilidade a angustia. Se não houve crime, como explicar a ausência? O fim daquele casal na parede?! Amou Luís perdidamente desde a primeira vez em que trocaram dez palavras, há quase quinze anos. Não lembrava exatamente o que foi dito por que entre a primeira e a terceira frase, perdeu-se. Aquela tâmara no centro da pupila dele a hipnotizava e transportava a um mundo paralelo, onde queria viver até o fim dos seus dias.
As lágrimas escorriam agora e subitamente todas as palavras de cada uma das cenas, nas fotos que tinha a sua frente, voltavam completas, limpas, como numa gravação digital de alta fidelidade. “Tenho uma teoria sobre nós”, dizia ele, entre risos, enquanto dançavam de rosto colado. “Nunca fizemos nenhum sentido juntos”. E ela finalmente concordava, balançando a cabeça e sorrindo, como naquele dia. Quando alguém nos abandona por outra pessoa e executa aparentemente sozinho a ação que muda nossa percepção de passado, presente e futuro, não dá para acreditar que não houve dolo. Algum culpado precisa aparecer para receber o peso dessa impotência sobre a escolha do outro, um ser que parece mais vital do que o ar no auge da paixão e, ainda assim, jamais nos pertenceu ou pertencerá.
Preferia ter visto o corpo de Luís duro e frio sobre sua cama a imaginá-lo quente e feliz sob os lençóis com outra mulher. Pelo menos seria um rompimento mais digno, que a deixaria no lugar onde ela imaginou morrer: no pedestal do amor da vida dele. Porque, no fundo, enquanto a vida não termina, esse lugar não pode ser assegurado a ninguém. Talvez só à própria vida, para quem não tem medo de cair e se levantar quantas vezes for preciso, ao longo do caminho.
Abre a gaveta e tira uma carta escrita a mão. Numa letra agora estranha, embora incrivelmente familiar.  
“Não posso explicar o que não tem lógica. Mas acima de tudo não posso mentir para você. Isso me mataria! Terminou como começou, sem nenhum sentido além daquele que brota do mais fundo do coração. Sinto muito abrir mão do que no tempo construímos com tanta solidez e que parecia uma certeza absoluta. Mas a vida é assim, encontra e faz sentido nas coisas mais improváveis e depois embaralha tudo para fazer novos e irresistíveis sentidos aos quais não sou capaz de dizer não.
Sempre seu,
Luís”
Não houve crime, nem culpado, entendia, só mais um ciclo que terminou. A hipótese verdadeira era também a mais simples. Caso encerrado.
 


sábado, 16 de fevereiro de 2019

IMPREVISTO


Lembra-se daquela luz de abril no Planalto Central. Fim de tarde. 1988. Os detalhes daqueles cabelos cacheados, naturalmente desalinhados, tingidos pelos raios do sol, iluminando um sorriso com os dentes da frente meio separados, tortos, como aquelas árvores do Cerrado que o alemão não consegue aceitar, tantos anos depois.

Inauguração do relógio de sol do Parque da Cidade. Brasília. Como tinha ido parar naquele lugar? Ah! Sim. O Observatório Nacional, homenageado na figura do relógio com projeto de Oscar Niemeyer, precisava mandar um representante para participar do evento. Podiam ter escolhido alguém menos inadequado.  Até o relógio de sol era diferenciado, se desespera, ao recordar o detalhe. Pela posição em que foi colocado, só marca as horas nos meses de março a outubro. Uma coisa assim não podia dar certo, lamenta-se Franz.

Olha o relógio de parede. Suíço. Presente do pai falecido. Esse sim marca todas as horas, não atrasa, não dá defeito, confiável. Está milimetricamente alinhado com o rodapé e com a emenda da parede. Ângulo reto, como sempre foi sua preferência. Do outro lado, o painel incompleto! Uma visão insuportável, mas perto de acabar. Falta apenas um azulejo, todos os demais estão na parede, devidamente rejuntados. Como pôde deixar Odete convencê-lo a montar esse painel? Justo ele? Tudo culpa daquele Cerrado, onde nunca mais botou os pés.

-E daquela luz acintosa - pragueja, com pouca convicção e um sorriso quase imperceptível  dentro.

De todas as mulheres do mundo, de todos os encontros, aquele não podia ter sido. Contrariando regras e bom senso, chão em cima do qual construiu sua vida. Anos passando a limpo aquele encontro e os que se seguiram. Naquela tarde, Odete chegou e veio em sua direção, parou e ficou ao seu lado. Parecia em casa em meio às árvores descabeladas como ela. Se tivesse pelo menos levado sua câmera, companheira inseparável nas viagens de campo, talvez tivesse conseguido se esconder. Sem a proteção das lentes angulares e de suas objetivas, entretanto, foi fulminado. O chão sumia debaixo dos pés, nenhuma regra ou bom senso à vista. A existência daquela cidade, ali naquele Cerrado, aliás, é mesmo um disparate sem tamanho do qual só os brasileiros podem ser capazes. Só a loucura explica o que se passou ali, embora tenha tido consciência com a exatidão de um geofísico alemão, do momento em que se perdeu.

A noite chegou e a luz não diminuiu. Pelo contrário, concentrou-se numa lua amarela, indecente como o sol daquele Planalto. Odete era feita de curvas e provocava nele ondas desconhecidas. Trabalhou anos com Athos Bulcão e depois,  passou a produzir azulejos inspirados na obra do mestre, mas com uma leitura e personalidade próprias.

- Azulejos piratas? - chegou a perguntar, desconfiado. Ela riu e desse diálogo surgiu o painel que ele tinha à sua frente, agora, tomando conta da sala de estar!

- Que tal criarmos algo juntos? Faço os azulejos e você monta o painel na sala da sua casa, onde nos encontraremos para inaugurar nossa obra.

Não sabia se estava preparado para revê-la, sequer tinha ideia de como continuaria sua vida.
- Aceito se você prometer que não entrará em contato comigo, sob nenhuma hipótese, entre um encontro e outro - defendeu-se. E completou, procurando um chão:
- De quantos azulejos estamos falando?
- Vinte – ela disse.
Pelo menos era um bom número. Ela pareceu gostar do desafio. E adicionou o detalhe final: cada azulejo traria uma mensagem cifrada, espécie de enigma que ele precisaria resolver para saber onde e quando aconteceria o próximo encontro entre os dois, onde receberia a peça seguinte. Regras acordadas, Odete buscou um azulejo e o entregou ao alemão.
Toca a campainha, interrompendo as reminiscências.
-É ela!
Coração disrítmico, abre a porta e encontra um menino magrelo e de olhos enormes, que lhe entrega uma caixa, com um bilhete.
- E essa agora? - desespera-se. - A surpresa não faz parte das regras! - reage profundamente contrariado.
Abre o pacote e reconhece a última peça, corre para verificar se encaixa e o rejunta, sem pensar em nada mais. Senta no sofá e contempla a obra completa. Um homem e uma mulher de cabelos cacheados, de mãos dadas, com uma luz colorida de fundo e um relógio de sol irreconhecível no horizonte. A última peça: o sorriso de Franz. Mas será que sorriu assim, de forma tão luminosa, naquele dia? Duvida. Nunca se achou capaz de um gesto tão natural.  E, de repente, chega a ausência brutal de Odete.
Abre o bilhete e não reconhece a letra.


Franz,
Odete não comparecerá ao encontro de inauguração do painel. Morreu há alguns meses, feliz por ter conseguido terminar a última peça, como haviam planejado. Não se perdoaria em deixar esse quadro inacabado em sua sala, sabia o quanto o faria sofrer. Espera que a perdoe por tudo. Mas a vida é um grande imprevisto.
P.S - Sempre te amou!
Madalena
- Quem é Madalena? - pensa Franz, ainda procurando alguma racionalidade, como um náufrago.
Silêncio. Só o tique taque do relógio suíço e o painel de uma beleza absurda, cheio daquela luz de abril em Brasília.
- Podia ser pior - ensaia, sabendo-se completamente vencido. - Ela não vem mais. Teve um imprevisto.
A ideia o corta como facadas ininterruptas em todas as direções e as lágrimas escapam, finalmente, tímidas primeiro, depois jorram até virarem soluços.
Maldito Planalto Central.

*Este conto foi submetido ao Desafio dos Escritores DF e criado a partir de três referências obrigatórias definidas pelos organizadores do concurso: um alemão obsessivo, um azulejo pirata do Athos Bulcão e o Relógio de Sol do Parque da Cidade. O texto foi publicado na Revista Traços, edição de dezembro de 2018.