sábado, 16 de fevereiro de 2019

IMPREVISTO


Lembra-se daquela luz de abril no Planalto Central. Fim de tarde. 1988. Os detalhes daqueles cabelos cacheados, naturalmente desalinhados, tingidos pelos raios do sol, iluminando um sorriso com os dentes da frente meio separados, tortos, como aquelas árvores do Cerrado que o alemão não consegue aceitar, tantos anos depois.

Inauguração do relógio de sol do Parque da Cidade. Brasília. Como tinha ido parar naquele lugar? Ah! Sim. O Observatório Nacional, homenageado na figura do relógio com projeto de Oscar Niemeyer, precisava mandar um representante para participar do evento. Podiam ter escolhido alguém menos inadequado.  Até o relógio de sol era diferenciado, se desespera, ao recordar o detalhe. Pela posição em que foi colocado, só marca as horas nos meses de março a outubro. Uma coisa assim não podia dar certo, lamenta-se Franz.

Olha o relógio de parede. Suíço. Presente do pai falecido. Esse sim marca todas as horas, não atrasa, não dá defeito, confiável. Está milimetricamente alinhado com o rodapé e com a emenda da parede. Ângulo reto, como sempre foi sua preferência. Do outro lado, o painel incompleto! Uma visão insuportável, mas perto de acabar. Falta apenas um azulejo, todos os demais estão na parede, devidamente rejuntados. Como pôde deixar Odete convencê-lo a montar esse painel? Justo ele? Tudo culpa daquele Cerrado, onde nunca mais botou os pés.

-E daquela luz acintosa - pragueja, com pouca convicção e um sorriso quase imperceptível  dentro.

De todas as mulheres do mundo, de todos os encontros, aquele não podia ter sido. Contrariando regras e bom senso, chão em cima do qual construiu sua vida. Anos passando a limpo aquele encontro e os que se seguiram. Naquela tarde, Odete chegou e veio em sua direção, parou e ficou ao seu lado. Parecia em casa em meio às árvores descabeladas como ela. Se tivesse pelo menos levado sua câmera, companheira inseparável nas viagens de campo, talvez tivesse conseguido se esconder. Sem a proteção das lentes angulares e de suas objetivas, entretanto, foi fulminado. O chão sumia debaixo dos pés, nenhuma regra ou bom senso à vista. A existência daquela cidade, ali naquele Cerrado, aliás, é mesmo um disparate sem tamanho do qual só os brasileiros podem ser capazes. Só a loucura explica o que se passou ali, embora tenha tido consciência com a exatidão de um geofísico alemão, do momento em que se perdeu.

A noite chegou e a luz não diminuiu. Pelo contrário, concentrou-se numa lua amarela, indecente como o sol daquele Planalto. Odete era feita de curvas e provocava nele ondas desconhecidas. Trabalhou anos com Athos Bulcão e depois,  passou a produzir azulejos inspirados na obra do mestre, mas com uma leitura e personalidade próprias.

- Azulejos piratas? - chegou a perguntar, desconfiado. Ela riu e desse diálogo surgiu o painel que ele tinha à sua frente, agora, tomando conta da sala de estar!

- Que tal criarmos algo juntos? Faço os azulejos e você monta o painel na sala da sua casa, onde nos encontraremos para inaugurar nossa obra.

Não sabia se estava preparado para revê-la, sequer tinha ideia de como continuaria sua vida.
- Aceito se você prometer que não entrará em contato comigo, sob nenhuma hipótese, entre um encontro e outro - defendeu-se. E completou, procurando um chão:
- De quantos azulejos estamos falando?
- Vinte – ela disse.
Pelo menos era um bom número. Ela pareceu gostar do desafio. E adicionou o detalhe final: cada azulejo traria uma mensagem cifrada, espécie de enigma que ele precisaria resolver para saber onde e quando aconteceria o próximo encontro entre os dois, onde receberia a peça seguinte. Regras acordadas, Odete buscou um azulejo e o entregou ao alemão.
Toca a campainha, interrompendo as reminiscências.
-É ela!
Coração disrítmico, abre a porta e encontra um menino magrelo e de olhos enormes, que lhe entrega uma caixa, com um bilhete.
- E essa agora? - desespera-se. - A surpresa não faz parte das regras! - reage profundamente contrariado.
Abre o pacote e reconhece a última peça, corre para verificar se encaixa e o rejunta, sem pensar em nada mais. Senta no sofá e contempla a obra completa. Um homem e uma mulher de cabelos cacheados, de mãos dadas, com uma luz colorida de fundo e um relógio de sol irreconhecível no horizonte. A última peça: o sorriso de Franz. Mas será que sorriu assim, de forma tão luminosa, naquele dia? Duvida. Nunca se achou capaz de um gesto tão natural.  E, de repente, chega a ausência brutal de Odete.
Abre o bilhete e não reconhece a letra.


Franz,
Odete não comparecerá ao encontro de inauguração do painel. Morreu há alguns meses, feliz por ter conseguido terminar a última peça, como haviam planejado. Não se perdoaria em deixar esse quadro inacabado em sua sala, sabia o quanto o faria sofrer. Espera que a perdoe por tudo. Mas a vida é um grande imprevisto.
P.S - Sempre te amou!
Madalena
- Quem é Madalena? - pensa Franz, ainda procurando alguma racionalidade, como um náufrago.
Silêncio. Só o tique taque do relógio suíço e o painel de uma beleza absurda, cheio daquela luz de abril em Brasília.
- Podia ser pior - ensaia, sabendo-se completamente vencido. - Ela não vem mais. Teve um imprevisto.
A ideia o corta como facadas ininterruptas em todas as direções e as lágrimas escapam, finalmente, tímidas primeiro, depois jorram até virarem soluços.
Maldito Planalto Central.

*Este conto foi submetido ao Desafio dos Escritores DF e criado a partir de três referências obrigatórias definidas pelos organizadores do concurso: um alemão obsessivo, um azulejo pirata do Athos Bulcão e o Relógio de Sol do Parque da Cidade. O texto foi publicado na Revista Traços, edição de dezembro de 2018.

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