Lembra-se daquela luz de abril no Planalto Central. Fim de
tarde. 1988. Os detalhes daqueles cabelos cacheados, naturalmente desalinhados,
tingidos pelos raios do sol, iluminando um sorriso com os dentes da frente meio
separados, tortos, como aquelas árvores do Cerrado que o alemão não consegue
aceitar, tantos anos depois.
Inauguração do relógio de sol do Parque da Cidade. Brasília.
Como tinha ido parar naquele lugar? Ah! Sim. O Observatório Nacional,
homenageado na figura do relógio com projeto de Oscar Niemeyer, precisava
mandar um representante para participar do evento. Podiam ter escolhido alguém
menos inadequado. Até o relógio de sol
era diferenciado, se desespera, ao recordar o detalhe. Pela posição em que foi
colocado, só marca as horas nos meses de março a outubro. Uma coisa assim não
podia dar certo, lamenta-se Franz.
Olha o relógio de parede. Suíço. Presente do pai falecido.
Esse sim marca todas as horas, não atrasa, não dá defeito, confiável. Está
milimetricamente alinhado com o rodapé e com a emenda da parede. Ângulo reto,
como sempre foi sua preferência. Do outro lado, o painel incompleto! Uma visão
insuportável, mas perto de acabar. Falta apenas um azulejo, todos os demais
estão na parede, devidamente rejuntados. Como pôde deixar Odete convencê-lo a
montar esse painel? Justo ele? Tudo culpa daquele Cerrado, onde nunca mais
botou os pés.
-E daquela luz acintosa - pragueja, com pouca convicção e um
sorriso quase imperceptível dentro.
De todas as mulheres do mundo, de todos os encontros, aquele
não podia ter sido. Contrariando regras e bom senso, chão em cima do qual
construiu sua vida. Anos passando a limpo aquele encontro e os que se seguiram.
Naquela tarde, Odete chegou e veio em sua direção, parou e ficou ao seu lado.
Parecia em casa em meio às árvores descabeladas como ela. Se tivesse pelo menos
levado sua câmera, companheira inseparável nas viagens de campo, talvez tivesse
conseguido se esconder. Sem a proteção das lentes angulares e de suas objetivas,
entretanto, foi fulminado. O chão sumia debaixo dos pés, nenhuma regra ou bom
senso à vista. A existência daquela cidade, ali naquele Cerrado, aliás, é mesmo
um disparate sem tamanho do qual só os brasileiros podem ser capazes. Só a
loucura explica o que se passou ali, embora tenha tido consciência com a exatidão
de um geofísico alemão, do momento em que se perdeu.
A noite chegou e a luz não diminuiu. Pelo contrário,
concentrou-se numa lua amarela, indecente como o sol daquele Planalto. Odete
era feita de curvas e provocava nele ondas desconhecidas. Trabalhou anos com
Athos Bulcão e depois, passou a produzir
azulejos inspirados na obra do mestre, mas com uma leitura e personalidade
próprias.
- Azulejos piratas? - chegou a perguntar, desconfiado. Ela
riu e desse diálogo surgiu o painel que ele tinha à sua frente, agora, tomando
conta da sala de estar!
- Que tal criarmos algo juntos? Faço os azulejos e você
monta o painel na sala da sua casa, onde nos encontraremos para inaugurar nossa
obra.
Não sabia se estava preparado para revê-la, sequer tinha
ideia de como continuaria sua vida.
- Aceito se você prometer que não entrará em contato comigo,
sob nenhuma hipótese, entre um encontro e outro - defendeu-se. E completou,
procurando um chão:
- De quantos azulejos estamos falando?
- Vinte – ela disse.
Pelo menos era um bom número. Ela pareceu gostar do desafio.
E adicionou o detalhe final: cada azulejo traria uma mensagem cifrada, espécie
de enigma que ele precisaria resolver para saber onde e quando aconteceria o próximo
encontro entre os dois, onde receberia a peça seguinte. Regras acordadas, Odete
buscou um azulejo e o entregou ao alemão.
Toca a campainha, interrompendo as reminiscências.
-É ela!
Coração disrítmico, abre a porta e encontra um menino
magrelo e de olhos enormes, que lhe entrega uma caixa, com um bilhete.
- E essa agora? - desespera-se. - A surpresa não faz parte
das regras! - reage profundamente contrariado.
Abre o pacote e reconhece a última peça, corre para
verificar se encaixa e o rejunta, sem pensar em nada mais. Senta no sofá e
contempla a obra completa. Um homem e uma mulher de cabelos cacheados, de mãos
dadas, com uma luz colorida de fundo e um relógio de sol irreconhecível no
horizonte. A última peça: o sorriso de Franz. Mas será que sorriu assim, de
forma tão luminosa, naquele dia? Duvida. Nunca se achou capaz de um gesto tão
natural. E, de repente, chega a ausência
brutal de Odete.
Abre o bilhete e não reconhece a letra.
Franz,
Odete não comparecerá
ao encontro de inauguração do painel. Morreu há alguns meses, feliz por ter
conseguido terminar a última peça, como haviam planejado. Não se perdoaria em
deixar esse quadro inacabado em sua sala, sabia o quanto o faria sofrer. Espera
que a perdoe por tudo. Mas a vida é um grande imprevisto.
P.S - Sempre te amou!
Madalena
- Quem é Madalena? - pensa Franz, ainda procurando alguma
racionalidade, como um náufrago.
Silêncio. Só o tique taque do relógio suíço e o painel de
uma beleza absurda, cheio daquela luz de abril em Brasília.
- Podia ser pior - ensaia, sabendo-se completamente vencido.
- Ela não vem mais. Teve um imprevisto.
A ideia o corta como facadas ininterruptas em todas as
direções e as lágrimas escapam, finalmente, tímidas primeiro, depois jorram até
virarem soluços.
Maldito Planalto Central.
*Este conto foi submetido ao Desafio dos Escritores DF e criado a
partir de três referências obrigatórias definidas pelos organizadores do
concurso: um alemão obsessivo, um azulejo pirata do Athos Bulcão e o Relógio de
Sol do Parque da Cidade. O texto foi publicado na Revista Traços, edição de dezembro de 2018.
Nenhum comentário:
Postar um comentário