sábado, 23 de fevereiro de 2019

INVESTIGAÇÃO INTERNA


Busca em cada janela aberta no computador em frente a resposta. A investigação começou lenta, sem evidências contundentes que formassem um rastro a seguir. Do enquadramento do crime ao sujeito oculto que movimentava a história, havia buracos e lacunas por toda parte, desafiando Jordana.
Nem a cronologia exata dos acontecimentos estava estabelecida, depois de quase um ano. Dormia montando os eventos em sua cabeça numa ordem e acordava certa de que não se encaixavam daquela forma e embaralhava tudo novamente, buscando algum sentido escondido naquele conjunto de informações e observações esparsas: fatos, frases, datas e personagens que não resultavam numa teoria minimamente aceitável.
Uma manhã de passarinhos alvoroçados na janela e cheiro de chuva no ar parecia perfeita para uma tarefa assim. Toda sua vida dependia daquela resposta e, embora tivesse se enganado muitas vezes, intuía a proximidade da revelação esperada e libertadora.
Em seus romances policiais favoritos, os detetives guardavam um traço comum – uma espécie de desajuste social os fazia perceber o entorno como algo ao qual não pertenciam completamente, muito em função da contundência de seu mundo interior, mais importantes para a narrativa e a elucidação dos casos do que a própria realidade. Nessas histórias, a verdade se escondia no entendimento da subjetividade dos envolvidos e não em provas, evidências e fatos dos inquéritos, meros coadjuvantes.
Jordana começara sua carreira de investigadora sem se dar conta. Uma curiosidade inata e um faro fino para a camada menos rasa dos relatos e das pessoas ao redor, onde o mais interessante de qualquer trama ou personagem costuma morar, levaram-na ao aprimoramento de uma espécie de sexto sentido. Algo que, com bastante treino, tornou-se um exercício permanente de lógica dedutiva diante dos acontecimentos mais banais.
Segundo a Biologia, descobriu, existem dois métodos científicos principais: a indução e a dedução. O primeiro parte de uma série de observações sobre um mesmo fato para, ao final, produzir uma conclusão baseada exclusivamente nelas. O segundo tenta explicar as coisas a partir de uma coleção de eventos que levam necessariamente a uma conclusão. A principal diferença entre eles está na possibilidade, na indução, de uma série de observações verdadeiras gerarem uma conclusão falsa, o que é impossível na dedução, onde só uma hipótese verdadeira pode gerar uma conclusão do mesmo tipo.
Isso cria espaço na dedução para o exercício da criatividade, da intuição e da experiência pessoal do investigador, obrigado a formular e reorganizar teorias durante todo o processo de trabalho até encontrar a hipótese certa e, a partir dela, a resposta. É muito mais a arte da interpretação da realidade e das pessoas do que da coleta metódica de um grande volume de observações.  
Por isso mesmo, um olhar afiado sobre um detalhe ínfimo conecta, inesperadamente, todos os pontos da história e traz a certeza do que se passou, mesmo antes das provas confirmarem a sensação do investigador. Certamente um dos trabalhos mais desgastantes que podem existir, sobretudo quando o método pressupõe a existência de conexões diretas entre os fatos em volta e o mundo de dentro onde habitam crenças, sentimentos, experiências e histórias que inevitavelmente estarão na base de cada hipótese formulada. Uma dinâmica clássica de transferência e contratransferência, diria a psicanálise. Com uma diferença fundamental: o sentido a ser encontrado não pertence a quem investiga, mas ao outro, o investigado, protagonista dos fatos.
As fotos dispostas em intervalos regulares na parede em frente à cama de Jordana, agora, reclamam um enredo minimamente verossímil e a tiram das divagações sobre seus romances policiais favoritos.  Coloca, então, o laptop de lado e concentra-se. O mesmo casal, em diferentes poses ao longo dos anos – aniversários, casamentos, viagens, momentos de lazer, encontro com amigos. Nenhuma imagem negativa ou que denuncie falta de sintonia ou de parceria. Até mesmo uma felicidade com lampejos daquela paixão com sabor de fruta mordida do Cazuza podia ser percebida.  O crime rompia o padrão – eis a única conclusão possível, a partir daquele painel. Mas é tão pouco?! Desespera-se.
Fecha os olhos e escuta as vozes colhidas em diligências diversas, ao longo do tempo. Deixa a mente vagar por trechos de mensagens trocadas pelo celular, e-mails e busca, atentamente, o detalhe que aponta a identidade do criminoso. O casal não existe mais, esse é o fato. E como fazer justiça à dor desse fim? Como se saber pudesse reparar, quando nem sempre é assim.
Tentava agora estabelecer o ponto de inflexão, o momento exato no qual Luís tinha mudado. Deixado de ser aquele homem mostrado nas fotos, quando começou a sumir. Talvez tenha sido alguém novo do trabalho. Afinal somos todos obrigados hoje em dia a compartilhar a mesma baia, em computadores dispostos lado a lado, nesses ambientes da moderna arquitetura nos quais privacidade virou crime. Se quiser falar sem ser ouvido por todos os demais colegas, vai sentar no corredor da escada de incêndio.
O único refúgio desse mundo de vigilância obrigada de todos por todos é um fone de ouvido com música, no máximo. Como não entrar na vida alheia que vive se esfregando na sua cara, mesmo contra sua vontade mais genuína de se distanciar e respeitar limites? Revoltava-se agora, ao imaginar como o criminoso poderia ter sido empurrado a fazer algo que nunca desejou ou buscou conscientemente.
E quem não se apaixonaria por Luís? Talvez no meio da multidão do Carnaval não fizesse muito sucesso. Pequeno, discreto, apesar de altamente magnético de um jeito tímido, despachado e misterioso, ao mesmo tempo. Mas as distrações ao redor e o torpor do álcool na cabeça certamente borrariam aquela imagem e toda a sedução que ela emanava de perto. A questão é que de perto, como diria Caetano, ninguém é normal.
Começa a sentir uma ponta de dúvida sobre a existência mesmo de um crime. E a mera admissão dessa possibilidade a angustia. Se não houve crime, como explicar a ausência? O fim daquele casal na parede?! Amou Luís perdidamente desde a primeira vez em que trocaram dez palavras, há quase quinze anos. Não lembrava exatamente o que foi dito por que entre a primeira e a terceira frase, perdeu-se. Aquela tâmara no centro da pupila dele a hipnotizava e transportava a um mundo paralelo, onde queria viver até o fim dos seus dias.
As lágrimas escorriam agora e subitamente todas as palavras de cada uma das cenas, nas fotos que tinha a sua frente, voltavam completas, limpas, como numa gravação digital de alta fidelidade. “Tenho uma teoria sobre nós”, dizia ele, entre risos, enquanto dançavam de rosto colado. “Nunca fizemos nenhum sentido juntos”. E ela finalmente concordava, balançando a cabeça e sorrindo, como naquele dia. Quando alguém nos abandona por outra pessoa e executa aparentemente sozinho a ação que muda nossa percepção de passado, presente e futuro, não dá para acreditar que não houve dolo. Algum culpado precisa aparecer para receber o peso dessa impotência sobre a escolha do outro, um ser que parece mais vital do que o ar no auge da paixão e, ainda assim, jamais nos pertenceu ou pertencerá.
Preferia ter visto o corpo de Luís duro e frio sobre sua cama a imaginá-lo quente e feliz sob os lençóis com outra mulher. Pelo menos seria um rompimento mais digno, que a deixaria no lugar onde ela imaginou morrer: no pedestal do amor da vida dele. Porque, no fundo, enquanto a vida não termina, esse lugar não pode ser assegurado a ninguém. Talvez só à própria vida, para quem não tem medo de cair e se levantar quantas vezes for preciso, ao longo do caminho.
Abre a gaveta e tira uma carta escrita a mão. Numa letra agora estranha, embora incrivelmente familiar.  
“Não posso explicar o que não tem lógica. Mas acima de tudo não posso mentir para você. Isso me mataria! Terminou como começou, sem nenhum sentido além daquele que brota do mais fundo do coração. Sinto muito abrir mão do que no tempo construímos com tanta solidez e que parecia uma certeza absoluta. Mas a vida é assim, encontra e faz sentido nas coisas mais improváveis e depois embaralha tudo para fazer novos e irresistíveis sentidos aos quais não sou capaz de dizer não.
Sempre seu,
Luís”
Não houve crime, nem culpado, entendia, só mais um ciclo que terminou. A hipótese verdadeira era também a mais simples. Caso encerrado.
 


sábado, 16 de fevereiro de 2019

IMPREVISTO


Lembra-se daquela luz de abril no Planalto Central. Fim de tarde. 1988. Os detalhes daqueles cabelos cacheados, naturalmente desalinhados, tingidos pelos raios do sol, iluminando um sorriso com os dentes da frente meio separados, tortos, como aquelas árvores do Cerrado que o alemão não consegue aceitar, tantos anos depois.

Inauguração do relógio de sol do Parque da Cidade. Brasília. Como tinha ido parar naquele lugar? Ah! Sim. O Observatório Nacional, homenageado na figura do relógio com projeto de Oscar Niemeyer, precisava mandar um representante para participar do evento. Podiam ter escolhido alguém menos inadequado.  Até o relógio de sol era diferenciado, se desespera, ao recordar o detalhe. Pela posição em que foi colocado, só marca as horas nos meses de março a outubro. Uma coisa assim não podia dar certo, lamenta-se Franz.

Olha o relógio de parede. Suíço. Presente do pai falecido. Esse sim marca todas as horas, não atrasa, não dá defeito, confiável. Está milimetricamente alinhado com o rodapé e com a emenda da parede. Ângulo reto, como sempre foi sua preferência. Do outro lado, o painel incompleto! Uma visão insuportável, mas perto de acabar. Falta apenas um azulejo, todos os demais estão na parede, devidamente rejuntados. Como pôde deixar Odete convencê-lo a montar esse painel? Justo ele? Tudo culpa daquele Cerrado, onde nunca mais botou os pés.

-E daquela luz acintosa - pragueja, com pouca convicção e um sorriso quase imperceptível  dentro.

De todas as mulheres do mundo, de todos os encontros, aquele não podia ter sido. Contrariando regras e bom senso, chão em cima do qual construiu sua vida. Anos passando a limpo aquele encontro e os que se seguiram. Naquela tarde, Odete chegou e veio em sua direção, parou e ficou ao seu lado. Parecia em casa em meio às árvores descabeladas como ela. Se tivesse pelo menos levado sua câmera, companheira inseparável nas viagens de campo, talvez tivesse conseguido se esconder. Sem a proteção das lentes angulares e de suas objetivas, entretanto, foi fulminado. O chão sumia debaixo dos pés, nenhuma regra ou bom senso à vista. A existência daquela cidade, ali naquele Cerrado, aliás, é mesmo um disparate sem tamanho do qual só os brasileiros podem ser capazes. Só a loucura explica o que se passou ali, embora tenha tido consciência com a exatidão de um geofísico alemão, do momento em que se perdeu.

A noite chegou e a luz não diminuiu. Pelo contrário, concentrou-se numa lua amarela, indecente como o sol daquele Planalto. Odete era feita de curvas e provocava nele ondas desconhecidas. Trabalhou anos com Athos Bulcão e depois,  passou a produzir azulejos inspirados na obra do mestre, mas com uma leitura e personalidade próprias.

- Azulejos piratas? - chegou a perguntar, desconfiado. Ela riu e desse diálogo surgiu o painel que ele tinha à sua frente, agora, tomando conta da sala de estar!

- Que tal criarmos algo juntos? Faço os azulejos e você monta o painel na sala da sua casa, onde nos encontraremos para inaugurar nossa obra.

Não sabia se estava preparado para revê-la, sequer tinha ideia de como continuaria sua vida.
- Aceito se você prometer que não entrará em contato comigo, sob nenhuma hipótese, entre um encontro e outro - defendeu-se. E completou, procurando um chão:
- De quantos azulejos estamos falando?
- Vinte – ela disse.
Pelo menos era um bom número. Ela pareceu gostar do desafio. E adicionou o detalhe final: cada azulejo traria uma mensagem cifrada, espécie de enigma que ele precisaria resolver para saber onde e quando aconteceria o próximo encontro entre os dois, onde receberia a peça seguinte. Regras acordadas, Odete buscou um azulejo e o entregou ao alemão.
Toca a campainha, interrompendo as reminiscências.
-É ela!
Coração disrítmico, abre a porta e encontra um menino magrelo e de olhos enormes, que lhe entrega uma caixa, com um bilhete.
- E essa agora? - desespera-se. - A surpresa não faz parte das regras! - reage profundamente contrariado.
Abre o pacote e reconhece a última peça, corre para verificar se encaixa e o rejunta, sem pensar em nada mais. Senta no sofá e contempla a obra completa. Um homem e uma mulher de cabelos cacheados, de mãos dadas, com uma luz colorida de fundo e um relógio de sol irreconhecível no horizonte. A última peça: o sorriso de Franz. Mas será que sorriu assim, de forma tão luminosa, naquele dia? Duvida. Nunca se achou capaz de um gesto tão natural.  E, de repente, chega a ausência brutal de Odete.
Abre o bilhete e não reconhece a letra.


Franz,
Odete não comparecerá ao encontro de inauguração do painel. Morreu há alguns meses, feliz por ter conseguido terminar a última peça, como haviam planejado. Não se perdoaria em deixar esse quadro inacabado em sua sala, sabia o quanto o faria sofrer. Espera que a perdoe por tudo. Mas a vida é um grande imprevisto.
P.S - Sempre te amou!
Madalena
- Quem é Madalena? - pensa Franz, ainda procurando alguma racionalidade, como um náufrago.
Silêncio. Só o tique taque do relógio suíço e o painel de uma beleza absurda, cheio daquela luz de abril em Brasília.
- Podia ser pior - ensaia, sabendo-se completamente vencido. - Ela não vem mais. Teve um imprevisto.
A ideia o corta como facadas ininterruptas em todas as direções e as lágrimas escapam, finalmente, tímidas primeiro, depois jorram até virarem soluços.
Maldito Planalto Central.

*Este conto foi submetido ao Desafio dos Escritores DF e criado a partir de três referências obrigatórias definidas pelos organizadores do concurso: um alemão obsessivo, um azulejo pirata do Athos Bulcão e o Relógio de Sol do Parque da Cidade. O texto foi publicado na Revista Traços, edição de dezembro de 2018.