sexta-feira, 15 de março de 2019

VERDE E AMARELO



A Esplanada está novamente vestida de verde e amarelo para o desfile de sete de setembro. Entre o Pavilhão de Metas, sede do primeiro governo de Juscelino Kubitscheck, logo na entrada, e a rodoviária, passo por seis semáforos: o primeiro em frente ao Planalto, o segundo no Congresso, o terceiro no Palácio da Justiça, o quarto no Ministério do Exército, o quinto no do Desenvolvimento e o sexto no Teatro Nacional, chegando assim à encruzilhada dos eixos, descrita por Lúcio Costa em seu plano poético-urbanístico: “Monumental, não no sentido de ostentação, mas no sentido da expressão palpável, por assim dizer, consciente daquilo que vale e significa”.

Cada sinal vermelho, uma estação de reflexão, como a via sacra do calvário nas igrejas. “E qual o sentido e o valor de cada uma delas?”, pergunto-me neste alvorecer, ao refazer o trajeto percorrido tantas vezes desde pequena subindo a Esplanada dos Ministérios. Parece que ouço o rádio de muitos anos atrás, no banco de trás do Opala branco do papai: “No dia 15 de novembro, vai dar 15 para senador e 15 para deputado, todo número do PMDB começa com 15! É a vitória do 15, no dia 15 de novembro...”. Campanha eleitoral para a Assembleia Nacional Constituinte, e ele ligado em cada palavra dita no rádio, na televisão, na fila da lotérica, sobre a eleição tão esperada para escrever a Constituição. Lembro-me de sua pele vermelha ficar ainda mais inflamada, da voz subir exaltada, comentando cada lance como um jogo de futebol do Flamengo, seu time, no tempo do Zico.

O sentido do desenvolvimento é a marcha para o Oeste...”, escuto agora em alto e bom som, na rua deserta, a voz empostada de Getúlio Vargas, vindo do disco de vinil que meu avô botava nas alturas quando queria rememorar os discursos mais célebres da política, que ele sabia de cor e dublava, enquanto tocavam na vitrola. Eu chegava à sua casa, em meio àquela encenação tão particular da história brasileira feita por ele, talentosíssimo na arte de interpretar, e viajava no tempo e naquele heroísmo caseiro de quem escreveu o pedaço mais concreto e duro dessa história.

A verdadeira paz é obra da Justiça”, frase célebre do profeta Isaías que saía agora do túnel da memória da boca de minha avó, que entoava sempre “Justiiiça, Justiiiiça, Justiiiça...”, em tons bem agudos, quando se sentia prejudicada na vida. Nascida no mesmo dia de Luiz Gonzaga, o rei do baião, na festa de Santa Luzia, em 1913, fugia de casa, menina, para entrar escondida no cinema e ver o beijo na boca de Rodolfo Valentino com alguma atriz da época. Pornografia pura, segundo sua mãe, mulher muito rígida mesmo para os padrões de então.

Em Uberlândia, ainda menina, subiu numa árvore e ficou durante horas esperando o encontro entre Luiz Carlos Prestes, comunista, e Plínio Salgado, integralista, e seus seguidores, no centro da cidade, ou pelo menos assim contava sempre. Todos haviam se recolhido com medo de um confronto violento, as mulheres, então, não tinham sido autorizadas a botar nem o nariz para fora de casa, e ela, na árvore. “Queria ouvir os dois falarem, sabe? Sempre adorei ver gente que fala bem. Faz o coração da gente pular”, justificava.  “Terá valido a pena?”, penso agora, ao ver o sol nascer neste sete de setembro tão distante daquele encontro em Uberlândia.

“Ripa na chulipa, pimba na gorduchinha”, Osmar Santos, inesquecível narrador de futebol e do movimento das Diretas Já!, naquele ano de 1984, entra agora em cena no meu desfile particular. Vejo-me agora, no passado mais recente, dentro do gabinete do Palácio da Justiça, sentindo-me uma Mulher Maravilha, parte da equipe do primeiro governo de esquerda democraticamente eleito no Brasil. O peito de havaiano (no caso, havaiana), estufado, como dizia Nelson Rodrigues, para descrever o orgulho cívico adquirido subitamente pelos brasileiros após a vitória na Copa de 1958. Pena não ter naquela época a lucidez de hoje, neste passeio ao alvorecer.

E aí, é inevitável lembrar a frase célebre de um presidente, infame em seu contexto original, mas certamente muito apropriada para a reflexão do momento, no sinal vermelho em frente ao Palácio da Justiça: “O tempo é o senhor da razão!” E ainda bem que ele não para e traz sempre um alvorecer simbólico de recomeço, mesmo na capital do Brasil, neste ano de 2017 ou 216S, como preferem alguns.

Passo agora pelo Teatro Nacional, fechado há anos, e vejo que ganhou um estacionamento completamente reformado em frente à Sala Martins Pena. Na rodoviária, os moradores de rua dormem embaixo do cruzamento dos eixos e os trabalhadores e artistas de sinal se multiplicam. Se Lúcio Costa voltasse para ver o coração de seu projeto, 57 anos depois da inauguração, será que encontraria nele valor e significado?

Sigo subindo e descendo a Esplanada e procurando, em cada semáforo, encontrar algum sinal em meio a tantas divagações, ampliadas pelo turbilhão de acontecimentos políticos e pessoais dos últimos anos. Apesar de toda a frustração ao dirigir ali, neste alvorecer de um sete de setembro muito diferente do que sonhei, mantenho-me fiel à fé inquebrantável, como diria JK, dos pioneiros que construíram minha amada Brasília, entre eles meus queridos avós, neste Planalto Central, onde ipês amarelos, em sua majestade, saúdam, anualmente, a independência, alheios ao desfile surreal (para dizer o mínimo) da política e de seus personagens.


sexta-feira, 8 de março de 2019

O SEGUNDO ENCONTRO




As folhas das árvores arranham meu rosto, enquanto me abaixo para me manter na trilha. Apoio as mãos nas pedras ao redor buscando o equilíbrio. O sol brilha mais em alguns pontos do caminho e, pela sua altura no céu, chuto ser quase meio-dia. O suor escorre, mas um cheiro de água e o barulho que ela faz no ouvido me renovam. Antecipo a delícia do mergulho, cada minuto mais próximo. Anseio pelo choque térmico que parece parar o coração por um instante e depois o acelera até o relaxamento total. Imagino um sorriso conhecido e ansioso, como o meu, pelo reencontro.

Vejo-me frente a frente com ele, mas não encontro seu olhar. Vem o escuro e, em seguida, tudo se dissipa e sai voando por alguma janela.

Mente limpa novamente, o espaço vazio entre uma coisa e outra. Uma luz intensa parece entrar pelo centro da minha cabeça. Como se enxergasse a paisagem em volta de olhos fechados. Volto a atenção aos barulhos do entorno, “olha a mente-elefante querendo te pisotear, garota!”. Concentro. Respiro, inspiro, expiro, escuto. Abro os olhos e encontro a paisagem familiar. Agradeço com as mãos em prece à minha árvore favorita, ao céu e depois prego a testa ao chão, um gesto de poder extraordinário.  “O chão me sustenta em todos os momentos”, repito como um mantra ao final da meditação.

Pego o diário e começo a escrever, possuída por ideias que nem sabia ter. A primeira vez que seus olhos pousaram na minha nuca, ela ardeu. Faz tanto tempo. Depois lembro de um bar barulhento, em Santa Tereza, fim de tarde e um olhar luminoso da alegria do encontro genuíno entre duas pessoas. Era para ser um diálogo, ainda que sem palavras, uma troca fluida, uma despreocupação completa com a própria imagem perante o outro. Afinal, se há afeto, importa mais?

Tanta vigilância e regras milimetricamente calculadas roubam meu ar, turvam minha visão, enganam meus ouvidos que tentam encontrar a batida do coração colado ao meu, buscam o pulso exato, querendo decifrar o que se esconde atrás daquela barreira impenetrável. Não consigo. O ritmo do nosso próprio coração só pode ser lido quando a gente deixa.

Levanto a cabeça do registro por uns instantes, procurando as palavras e o sentimento para continuar a escrita. Quando imaginei o segundo encontro parecia simples, até estar lá e navegar com o próprio corpo: lembranças, sensações, expectativas, tocar com as próprias mãos nas árvores, pisar as pedras e experimentar na carne os ossos gelados.

A lua quase cheia, como querendo transbordar, vai ficando mais forte contra os tons de rosa e azul do entardecer de Brasília, em junho. Uma brisa leve, vinda do lago, lembra-me o desperdício do encontro ensaiado e não realizado. No último instante, resolveu não aparecer e mandou um emissário desconhecido com um recado torto, incompreensível. No meio do gramado, com a lua de testemunha, vestida de desejo e consciente de meus medos, dúvidas e angústias, cheguei a me sentir à vontade até com a minha própria fragilidade. “Isso é que é preparar-se para um encontro!” Estava orgulhosa do trabalho realizado para chegar àquele momento. Daí aparece um vulto que, de longe, parece o homem esperado. Mas quanto mais se aproxima, menos o reconheço. Essa imagem, desafortunadamente, não se dissipou. Ao contrário, revelou-se real a ponto de eu poder tocar com minhas mãos no muro erguido entre nós e na solidão do lado de dentro do forte, onde se protegeu, cancelando o encontro.







sexta-feira, 1 de março de 2019

A ESTRELA E O ELEFANTE


Parada no meio do terreiro de festa, Lilica ouvia, de um lado, o som da zabumba e da sanfona ensaiando e, do outro, um vento forte de manhã de inverno no sertão, tocando poeira fina em todas as direções. De repente, sente alguma coisa pregada na testa. Passa o dedo e vem junto uma estrelinha azul de papel brilhoso que nem sol de meio-dia. 

Imediatamente, passa tudo de novo. Noite da lua cheia mais enxerida da sua vida. Daquelas que chegam tão perto para espiar o que a gente está fazendo que dá vontade de pedir licença. Lilica até falou com ela, mas não adiantou, a danada continuou seguindo a menina. Esperou as seis irmãs, mais pai e mãe dormirem, e desceu pela árvore, que cresce junto à janela do quarto. Tudo com a lua espiando, interessadíssima!

Chegou pisando macio, igual ladrão profissional de galinha, que passa a mão e leva embora sem arrancar um pio das bichinhas. Procurou no pé da lona um buraco grande o suficiente para passar o corpo e entrou. Não calculou que ia adentrar justo atrás do picadeiro. Pior. O moço, motivo da aventura, estava justamente ali treinando. Pode? 

“Pelo menos aqui dentro a lua não pode espiar”, pensou, tentando se acalmar. 

Há uma semana não se falava em outra coisa na cidade. Em todas as bocas só tinha um nome: Vikruuuum, ou Víííkrum, dependendo. Mas era ele! O indiano que tinha vindo do outro lado do mundo montado num elefante, atravessado o sertão todinho atrás do pife perfeito para fazer parelha com sua cítara. Ou será citáara?! Lilica não estava bem certa. Aliás, tinha certeza de estar era muito errada, sem juízo, sem noção. 
E antes que pudesse dar meia volta e sair por onde entrou, deu de cara com ele. 

“Vixe, Maria! Só pode ser assombração! Bonito desse jeito!”, pensou Lilica, fazendo o sinal da cruz. E ele riu ao ver a menina se benzendo. E o som que saiu daquela boca desenhada e cheia de carne, fez cócegas dentro da orelha de Lilica e aumentou a confusão.

Quando deu por si, Lilica estava lá em cima, perto do céu de estrelas coloridas da lona do circo. O indiano era trapezista. O ombro forte e as faixas amarradas no punho não enganavam. Parecia saído de livro. Pulou no trapézio e começou a voar para cá e para lá, hipnotizando a menina. Aí, do nada, voltou para onde Lilica estava, mostrou o trapézio e ofereceu uma carona, apontando com o queixo para ele. 

V-E-R-T-I-G-E-M. 

“Só pode ser ela”, pensou Lilica.  “Ou será o P-R-E-C-I-P-Í-C-I-O da vovó, toda vez que passa numa ribanceira?” O indiano não é Vikruuum, nem Víííkrum, é Vertíiigeeem ou Precipíciiiiiioooooooooo. Não deu tempo de saber. O moço da pele maravilhosamente encardida, não dava tempo de pensar. Pegou firme na cintura de Lilica e a levantou até o trapézio. O calor das mãos coladas no vestido fazia mais cócegas que o macio da voz. Mas não deu para se benzer e o jeito foi agarrar firme no trapézio e, assim, voou com ele, no meio das estrelas. 

“Agora queria ver a lua enxerida espiando! Até que ia compor bem o cenário”, diverte-se Lilica, entregando-se completamente à sensação de vertigem, cada vez mais gostosa. 

“Ô menina! Tá fazendo o quê com essa cara de abestada no meio do terreiro?!”, grita a mãe. “Tá na hora de se arrumar!”

Lilica guarda depressa a estrelinha e se recompõe. Os convidados estão chegando, o som da zabumba e da sanfona se aproximando junto com um triângulo rápido que só. Ou será a batida do seu coração disparado?! 
Chegou a sua vez! Depois de esperar as seis irmãs mais velhas serem o centro da festa, finalmente seria ela a estrela, sim, a caçula, a cabeça-de-vento, mas ainda assim E-S-T-R-E-L-A. Corre para dentro e entra no vestido branco rendado por toda parte, a coisa mais linda do mundo. Põe o véu e pega o buquê. Vai começar o casamento na roça! Olha o noivo. Zizinho bem podia ser um indiano montado no elefante, trapezista, tocador de cítara. Pensando bem, podia ser muito mais, ensaia, rindo, depois de notar uma estrelinha azul se divertindo pregada no meio da testa dele.