Novamente na coxia de um palco. A mesma
sensação dos nove anos de idade, ao penetrar no interior dessa fábrica
rudimentar de realidades paralelas e fantásticas do teatro. O silêncio devotado
às igrejas faz os próprios passos tornarem-se instintivamente leves para não
perturbar a magia em curso. Na coxia, sente-se invisível, observa, voyeur-mor, como
se fora uma grande angular a capturar dois mundos, palco e plateia, e suas interações e
catarses. Pelo tempo do espetáculo será assim: estarão todos na última fronteira
da imaginação humana, à
beira do abismo particular de cada um, que se apresentará inadvertida e
repentinamente no decorrer da peça.
Talvez tenha sido a necessidade de voltar a
essa coxia que a movera a conquistar João. E agora, vitoriosa por alcançar sua
meta, assistia a tudo o que o seu esforço tornou concreto e real. Eram dela a vida e a potência que
animavam tudo o que acontecia no palco. Mas, em algum lugar, havia um
desconforto, vindo de uma espécie de câmera invisível a filmá-la e, ao mesmo
tempo, a questioná-la, tentando roubar aquele momento de glória e prazer.
Chamar-se Medeia era como ser predestinada a
viver aprisionada numa tragédia, reencenada tantas vezes, a narrativa clássica
da vingança feminina. A mulher que faz o homem, injeta nele sua genialidade,
conhecimento de vida, potência e o transforma em herói, em profissional
bem-sucedido, líder, grande artista. E justo no auge, no momento da recompensa,
agoniza diante da rejeição por parte do ser amado, que prefere usufruir o
reconhecimento ao lado de outra mulher, exatamente como João.
E
o que é pior. Ninguém além dele sabe do seu valor e do seu papel naquele empreendimento de sucesso. Suprema traição conhecida
apenas pelas mulheres que acreditam precisar se esconder atrás de um homem para
exercerem sua potência realizadora e transformadora sem pudor. E, por não conseguirem
reconhecer o próprio valor, reduzem a sua própria importância a conseguirem ou
não segurarem o seu macho. Aí perdem-se completamente, como Medeia no mito grego, como se tivessem
fracassado como ser humano ao serem trocadas por outra.
Não por acaso, a lenda de Medeia associa-se ao
poder da imaginação humana em sua aventura criativa. Nela, Jasão é usurpado do
seu trono, ainda criança, e adulto volta para retomá-lo do tio vilão, que o
convence a realizar uma prova de merecimento da coroa, recuperando o bezerro de
ouro, guardado no reino de Eetes. Jasão embarca num navio com os mais famosos
guerreiros da época, conhecidos nesse mito como os Argonautas, e depois de lutar contra monstros e inimigos, conquista
seu objetivo, graças à ajuda da feiticeira e filha do rei Eetes, Medeia. Ela
apaixona-se por Jasão e revela a ele o segredo que permite vencer o dragão que
guarda o bezerro de ouro. Os dois retornam juntos para a terra natal de Jasão,
mas logo após seu coroamento, ele decide casar-se com outra. Numa das versões
da lenda, Medeia mata, por vingança, os filhos do herói com a nova esposa,
enquanto em outras, ela elimina os próprios rebentos do casal, consumida pelo
sentimento de injustiça e humilhação diante da paixão de Jasão por outra.
Toda mulher poderosa aspira a algum tipo de
heroísmo cruelmente reservado aos homens em nossa sociedade. Mas as Medeias
incorporam o modelo da realização por meio do amado e, ao se apaixonarem,
transferem toda a sua força para eles, caindo na armadilha de acharem que essa
potência nunca lhes pertenceu. Fomos ensinadas a enxergar a vagina como marca
de fragilidade, e nunca de poder. Mas é dentro dela que a criação de fato
acontece, desde o ato sexual até a gestação de uma nova vida, o verdadeiro
centro do universo, escondido dos olhos do mundo.
Nesse ponto, o diálogo no palco corta os
pensamentos de Medeia. E ela ri, distraidamente, e logo retoma o raciocínio, ao
lembrar da deusa africana da criação - Odubaiá. Tão discreta na sua potência
criadora, que ignora Oxalá e Ogum, em sua eterna disputa pela primazia sobre a
invenção do universo. Faz o mundo porque pode e quer, e não se preocupa com a
irrelevância dos homens a disputar quem criou o mundo. A ela basta manifestar o
próprio poder e se nutrir do que realizou, sem precisar como Medeia da
confirmação de seu poder refletida pelo espelho do reconhecimento do parceiro.
Se é amada, sente-se plena, se não, sequer existe.
João tinha sido uma conquista longa, difícil,
arrancada a fórceps. O problema é que quando ele suspendeu o véu de mistério do
prelúdio da paixão e tornou-se um homem de carne e osso, no convívio,
mostrou-se muito mirrado para o papel de herói que ela lhe destinou. Com as falas
prontas e escritas por ela, com a luz favorável e o cenário perfeito, além do
pleno domínio da técnica de interpretação, como estava agora, no palco, parecia
mesmo o cavalheiro arrebatador, de ares libertários do começo. Mas agora ela
sabia que a substância e a profundidade do personagem vinham do olhar dela
muito mais do que dele mesmo.
De um parceiro capaz de trocas deliciosas
sobre arte, no que ela tem de mais essencial que é ser metáfora da vida - fio desencapado, a transmitir a eletricidade
de existir de um ser humano a outro - passou a um autocentrado, ególatra,
incapaz de enxergar além dos próprios interesses, alheio ao seu impacto nas
pessoas e no mundo. Talvez porque completamente desconectado de si mesmo. Pior:
medroso, pessimista, conservador, quase autista no funcionamento de sua
personalidade obsessiva, como se o mundo só existisse para servi-lo ou para
frustrá-lo. E como será que Medeia pôde, durante tanto tempo, viver ali, num
encantamento tal diante daquele ator, como se estar perto dele pudesse
representar uma possibilidade de alargamento do que ela conhecia da
existência?!
Um intenso beijo na boca, no palco, preenche o
ar do teatro agora. E, da
coxia, ela enxerga a técnica dos atores de um lado, ao mesmo tempo em que sente
na carne os suspiros na plateia, cada um
assistindo à sua própria cena de amor, ela inclusive. E as lágrimas
fluem, afinal aquele deleite incrível da presença de João se dissipou
completamente, fazendo voltar a solidão de outros tempos, e à impotência de ter
que aceitar o limite do outro e suas escolhas.
Até quem sabe encontrar alguém que seja
verdadeiramente maior que as fantasias de amor que projeta, e que no cotidiano
mostre-se mais interessante e sedutor do que suas projeções, surpreendendo na experiência concreta
do contato. De toda forma, não vale o desespero do gesto de Medeia, pelo menos
não mais, felizmente, depois de tanta luta feminina. Ao menos, esse gozo cabe
às mulheres de hoje. Que deixem seus falsos príncipes voltarem a ser sapos,
como talvez tenham sido sempre até beijá-las.
Chega o ato final e ninguém mais respira no
teatro, nem ela, tamanha a tensão provocada pelo desenrolar dos diálogos e da
interação entre os atores. “Explicar a morte é fácil. Difícil é explicar o
beijo”, a reprodução da célebre frase de abertura de Nelson Rodrigues em “O
Beijo no Asfalto”, colocada ali, como fala final da personagem principal, uma
mulher, encerra o mistério. E a plateia,
depois de uns instantes de silêncio reflexivo, de pé, aplaude até Medeia não
ouvir nada mais, além das batidas alucinadas do próprio coração diante do
reconhecimento que sim lhe pertence, muito além de João.
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