quarta-feira, 14 de agosto de 2019

MEDEIA REVISITADA



Novamente na coxia de um palco. A mesma sensação dos nove anos de idade, ao penetrar no interior dessa fábrica rudimentar de realidades paralelas e fantásticas do teatro. O silêncio devotado às igrejas faz os próprios passos tornarem-se instintivamente leves para não perturbar a magia em curso. Na coxia, sente-se invisível, observa, voyeur-mor, como se fora uma grande angular a capturar dois mundos, palco e plateia, e suas interações e catarses. Pelo tempo do espetáculo será assim: estarão todos na última fronteira da imaginação humana, à beira do abismo particular de cada um, que se apresentará inadvertida e repentinamente no decorrer da peça.

Talvez tenha sido a necessidade de voltar a essa coxia que a movera a conquistar João. E agora, vitoriosa por alcançar sua meta, assistia a tudo o que o seu esforço tornou concreto e real. Eram dela a vida e a potência que animavam tudo o que acontecia no palco. Mas, em algum lugar, havia um desconforto, vindo de uma espécie de câmera invisível a filmá-la e, ao mesmo tempo, a questioná-la, tentando roubar aquele momento de glória e prazer.

Chamar-se Medeia era como ser predestinada a viver aprisionada numa tragédia, reencenada tantas vezes, a narrativa clássica da vingança feminina. A mulher que faz o homem, injeta nele sua genialidade, conhecimento de vida, potência e o transforma em herói, em profissional bem-sucedido, líder, grande artista. E justo no auge, no momento da recompensa, agoniza diante da rejeição por parte do ser amado, que prefere usufruir o reconhecimento ao lado de outra mulher, exatamente como João.

E o que é pior. Ninguém além dele sabe do seu valor e do seu papel naquele empreendimento de sucesso. Suprema traição conhecida apenas pelas mulheres que acreditam precisar se esconder atrás de um homem para exercerem sua potência realizadora e transformadora sem pudor. E, por não conseguirem reconhecer o próprio valor, reduzem a sua própria importância a conseguirem ou não segurarem o seu macho. Aí perdem-se completamente, como Medeia no mito grego, como se tivessem fracassado como ser humano ao serem trocadas por outra.

Não por acaso, a lenda de Medeia associa-se ao poder da imaginação humana em sua aventura criativa. Nela, Jasão é usurpado do seu trono, ainda criança, e adulto volta para retomá-lo do tio vilão, que o convence a realizar uma prova de merecimento da coroa, recuperando o bezerro de ouro, guardado no reino de Eetes. Jasão embarca num navio com os mais famosos guerreiros da época, conhecidos nesse mito como os Argonautas, e depois de  lutar contra monstros e inimigos, conquista seu objetivo, graças à ajuda da feiticeira e filha do rei Eetes, Medeia. Ela apaixona-se por Jasão e revela a ele o segredo que permite vencer o dragão que guarda o bezerro de ouro. Os dois retornam juntos para a terra natal de Jasão, mas logo após seu coroamento, ele decide casar-se com outra. Numa das versões da lenda, Medeia mata, por vingança, os filhos do herói com a nova esposa, enquanto em outras, ela elimina os próprios rebentos do casal, consumida pelo sentimento de injustiça e humilhação diante da paixão de Jasão por outra.

Toda mulher poderosa aspira a algum tipo de heroísmo cruelmente reservado aos homens em nossa sociedade. Mas as Medeias incorporam o modelo da realização por meio do amado e, ao se apaixonarem, transferem toda a sua força para eles, caindo na armadilha de acharem que essa potência nunca lhes pertenceu. Fomos ensinadas a enxergar a vagina como marca de fragilidade, e nunca de poder. Mas é dentro dela que a criação de fato acontece, desde o ato sexual até a gestação de uma nova vida, o verdadeiro centro do universo, escondido dos olhos do mundo.

Nesse ponto, o diálogo no palco corta os pensamentos de Medeia. E ela ri, distraidamente, e logo retoma o raciocínio, ao lembrar da deusa africana da criação - Odubaiá. Tão discreta na sua potência criadora, que ignora Oxalá e Ogum, em sua eterna disputa pela primazia sobre a invenção do universo. Faz o mundo porque pode e quer, e não se preocupa com a irrelevância dos homens a disputar quem criou o mundo. A ela basta manifestar o próprio poder e se nutrir do que realizou, sem precisar como Medeia da confirmação de seu poder refletida pelo espelho do reconhecimento do parceiro. Se é amada, sente-se plena, se não, sequer existe.

João tinha sido uma conquista longa, difícil, arrancada a fórceps. O problema é que quando ele suspendeu o véu de mistério do prelúdio da paixão e tornou-se um homem de carne e osso, no convívio, mostrou-se muito mirrado para o papel de herói que ela lhe destinou. Com as falas prontas e escritas por ela, com a luz favorável e o cenário perfeito, além do pleno domínio da técnica de interpretação, como estava agora, no palco, parecia mesmo o cavalheiro arrebatador, de ares libertários do começo. Mas agora ela sabia que a substância e a profundidade do personagem vinham do olhar dela muito mais do que dele mesmo.

De um parceiro capaz de trocas deliciosas sobre arte, no que ela tem de mais essencial que é ser metáfora da vida -  fio desencapado, a transmitir a eletricidade de existir de um ser humano a outro - passou a um autocentrado, ególatra, incapaz de enxergar além dos próprios interesses, alheio ao seu impacto nas pessoas e no mundo. Talvez porque completamente desconectado de si mesmo. Pior: medroso, pessimista, conservador, quase autista no funcionamento de sua personalidade obsessiva, como se o mundo só existisse para servi-lo ou para frustrá-lo. E como será que Medeia pôde, durante tanto tempo, viver ali, num encantamento tal diante daquele ator, como se estar perto dele pudesse representar uma possibilidade de alargamento do que ela conhecia da existência?!

Um intenso beijo na boca, no palco, preenche o ar do teatro agora. E, da coxia, ela enxerga a técnica dos atores de um lado, ao mesmo tempo em que sente na carne os suspiros na plateia, cada um  assistindo à sua própria cena de amor, ela inclusive. E as lágrimas fluem, afinal aquele deleite incrível da presença de João se dissipou completamente, fazendo voltar a solidão de outros tempos, e à impotência de ter que aceitar o limite do outro e suas escolhas.

Até quem sabe encontrar alguém que seja verdadeiramente maior que as fantasias de amor que projeta, e que no cotidiano mostre-se mais interessante e sedutor do que suas projeções, surpreendendo na experiência concreta do contato. De toda forma, não vale o desespero do gesto de Medeia, pelo menos não mais, felizmente, depois de tanta luta feminina. Ao menos, esse gozo cabe às mulheres de hoje. Que deixem seus falsos príncipes voltarem a ser sapos, como talvez tenham sido sempre até beijá-las.

Chega o ato final e ninguém mais respira no teatro, nem ela, tamanha a tensão provocada pelo desenrolar dos diálogos e da interação entre os atores. “Explicar a morte é fácil. Difícil é explicar o beijo”, a reprodução da célebre frase de abertura de Nelson Rodrigues em “O Beijo no Asfalto”, colocada ali, como fala final da personagem principal, uma mulher, encerra o mistério.  E a plateia, depois de uns instantes de silêncio reflexivo, de pé, aplaude até Medeia não ouvir nada mais, além das batidas alucinadas do próprio coração diante do reconhecimento que sim lhe pertence, muito além de João.



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