Parada no meio do terreiro de festa, Lilica ouvia, de um lado, o som da zabumba e da sanfona ensaiando e, do outro, um vento forte de manhã de inverno no sertão, tocando poeira fina em todas as direções. De repente, sente alguma coisa pregada na testa. Passa o dedo e vem junto uma estrelinha azul de papel brilhoso que nem sol de meio-dia.
Imediatamente, passa tudo de novo. Noite da lua cheia mais enxerida da sua vida. Daquelas que chegam tão perto para espiar o que a gente está fazendo que dá vontade de pedir licença. Lilica até falou com ela, mas não adiantou, a danada continuou seguindo a menina. Esperou as seis irmãs, mais pai e mãe dormirem, e desceu pela árvore, que cresce junto à janela do quarto. Tudo com a lua espiando, interessadíssima!
Chegou pisando macio, igual ladrão profissional de galinha, que passa a mão e leva embora sem arrancar um pio das bichinhas. Procurou no pé da lona um buraco grande o suficiente para passar o corpo e entrou. Não calculou que ia adentrar justo atrás do picadeiro. Pior. O moço, motivo da aventura, estava justamente ali treinando. Pode?
“Pelo menos aqui dentro a lua não pode espiar”, pensou, tentando se acalmar.
Há uma semana não se falava em outra coisa na cidade. Em todas as bocas só tinha um nome: Vikruuuum, ou Víííkrum, dependendo. Mas era ele! O indiano que tinha vindo do outro lado do mundo montado num elefante, atravessado o sertão todinho atrás do pife perfeito para fazer parelha com sua cítara. Ou será citáara?! Lilica não estava bem certa. Aliás, tinha certeza de estar era muito errada, sem juízo, sem noção.
E antes que pudesse dar meia volta e sair por onde entrou, deu de cara com ele.
“Vixe, Maria! Só pode ser assombração! Bonito desse jeito!”, pensou Lilica, fazendo o sinal da cruz. E ele riu ao ver a menina se benzendo. E o som que saiu daquela boca desenhada e cheia de carne, fez cócegas dentro da orelha de Lilica e aumentou a confusão.
Quando deu por si, Lilica estava lá em cima, perto do céu de estrelas coloridas da lona do circo. O indiano era trapezista. O ombro forte e as faixas amarradas no punho não enganavam. Parecia saído de livro. Pulou no trapézio e começou a voar para cá e para lá, hipnotizando a menina. Aí, do nada, voltou para onde Lilica estava, mostrou o trapézio e ofereceu uma carona, apontando com o queixo para ele.
V-E-R-T-I-G-E-M.
“Só pode ser ela”, pensou Lilica. “Ou será o P-R-E-C-I-P-Í-C-I-O da vovó, toda vez que passa numa ribanceira?” O indiano não é Vikruuum, nem Víííkrum, é Vertíiigeeem ou Precipíciiiiiioooooooooo. Não deu tempo de saber. O moço da pele maravilhosamente encardida, não dava tempo de pensar. Pegou firme na cintura de Lilica e a levantou até o trapézio. O calor das mãos coladas no vestido fazia mais cócegas que o macio da voz. Mas não deu para se benzer e o jeito foi agarrar firme no trapézio e, assim, voou com ele, no meio das estrelas.
“Agora queria ver a lua enxerida espiando! Até que ia compor bem o cenário”, diverte-se Lilica, entregando-se completamente à sensação de vertigem, cada vez mais gostosa.
“Ô menina! Tá fazendo o quê com essa cara de abestada no meio do terreiro?!”, grita a mãe. “Tá na hora de se arrumar!”
Lilica guarda depressa a estrelinha e se recompõe. Os convidados estão chegando, o som da zabumba e da sanfona se aproximando junto com um triângulo rápido que só. Ou será a batida do seu coração disparado?!
Chegou a sua vez! Depois de esperar as seis irmãs mais velhas serem o centro da festa, finalmente seria ela a estrela, sim, a caçula, a cabeça-de-vento, mas ainda assim E-S-T-R-E-L-A. Corre para dentro e entra no vestido branco rendado por toda parte, a coisa mais linda do mundo. Põe o véu e pega o buquê. Vai começar o casamento na roça! Olha o noivo. Zizinho bem podia ser um indiano montado no elefante, trapezista, tocador de cítara. Pensando bem, podia ser muito mais, ensaia, rindo, depois de notar uma estrelinha azul se divertindo pregada no meio da testa dele.
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