A Esplanada está novamente vestida
de verde e amarelo para o desfile de sete de setembro. Entre o Pavilhão de
Metas, sede do primeiro governo de Juscelino Kubitscheck, logo na entrada, e a
rodoviária, passo por seis semáforos: o primeiro em frente ao Planalto, o
segundo no Congresso, o terceiro no Palácio da Justiça, o quarto no Ministério
do Exército, o quinto no do Desenvolvimento e o sexto no Teatro Nacional,
chegando assim à encruzilhada dos eixos, descrita por Lúcio Costa em seu plano
poético-urbanístico: “Monumental, não no
sentido de ostentação, mas no sentido da expressão palpável, por assim dizer,
consciente daquilo que vale e significa”.
Cada sinal vermelho, uma estação
de reflexão, como a via sacra do calvário nas igrejas. “E qual o sentido e o
valor de cada uma delas?”, pergunto-me neste alvorecer, ao refazer o trajeto percorrido
tantas vezes desde pequena subindo a Esplanada dos Ministérios. Parece que ouço
o rádio de muitos anos atrás, no banco de trás do Opala branco do papai: “No dia 15 de novembro, vai dar 15 para
senador e 15 para deputado, todo número do PMDB começa com 15! É a vitória do
15, no dia 15 de novembro...”. Campanha eleitoral para a Assembleia
Nacional Constituinte, e ele ligado em cada palavra dita no rádio, na
televisão, na fila da lotérica, sobre a eleição tão esperada para escrever a
Constituição. Lembro-me de sua pele vermelha ficar ainda mais inflamada, da voz
subir exaltada, comentando cada lance como um jogo de futebol do Flamengo, seu
time, no tempo do Zico.
“O sentido do desenvolvimento é a marcha para o Oeste...”, escuto
agora em alto e bom som, na rua deserta, a voz empostada de Getúlio Vargas,
vindo do disco de vinil que meu avô botava nas alturas quando queria rememorar
os discursos mais célebres da política, que ele sabia de cor e dublava,
enquanto tocavam na vitrola. Eu chegava à sua casa, em meio àquela encenação
tão particular da história brasileira feita por ele, talentosíssimo na arte de
interpretar, e viajava no tempo e naquele heroísmo caseiro de quem escreveu o
pedaço mais concreto e duro dessa história.
“A verdadeira paz é obra da Justiça”, frase célebre do profeta
Isaías que saía agora do túnel da memória da boca de minha avó, que entoava sempre
“Justiiiça, Justiiiiça, Justiiiça...”, em tons bem agudos, quando se sentia
prejudicada na vida. Nascida no mesmo dia de Luiz Gonzaga, o rei do baião, na
festa de Santa Luzia, em 1913, fugia de casa, menina, para entrar escondida no
cinema e ver o beijo na boca de Rodolfo Valentino com alguma atriz da época.
Pornografia pura, segundo sua mãe, mulher muito rígida mesmo para os padrões de
então.
Em Uberlândia, ainda menina,
subiu numa árvore e ficou durante horas esperando o encontro entre Luiz Carlos
Prestes, comunista, e Plínio Salgado, integralista, e seus seguidores, no
centro da cidade, ou pelo menos assim contava sempre. Todos haviam se recolhido
com medo de um confronto violento, as mulheres, então, não tinham sido
autorizadas a botar nem o nariz para fora de casa, e ela, na árvore. “Queria
ouvir os dois falarem, sabe? Sempre adorei ver gente que fala bem. Faz o
coração da gente pular”, justificava. “Terá
valido a pena?”, penso agora, ao ver o sol nascer neste sete de setembro tão
distante daquele encontro em Uberlândia.
“Ripa na chulipa, pimba na
gorduchinha”, Osmar Santos, inesquecível narrador de futebol e do movimento das
Diretas Já!, naquele ano de 1984, entra
agora em cena no meu desfile particular. Vejo-me agora, no passado mais recente,
dentro do gabinete do Palácio da Justiça, sentindo-me uma Mulher Maravilha,
parte da equipe do primeiro governo de esquerda democraticamente eleito no
Brasil. O peito de havaiano (no caso, havaiana), estufado, como dizia Nelson
Rodrigues, para descrever o orgulho cívico adquirido subitamente pelos
brasileiros após a vitória na Copa de 1958. Pena não ter naquela época a
lucidez de hoje, neste passeio ao alvorecer.
E aí, é inevitável lembrar a
frase célebre de um presidente, infame em seu contexto original, mas certamente
muito apropriada para a reflexão do momento, no sinal vermelho em frente ao
Palácio da Justiça: “O tempo é o senhor
da razão!” E ainda bem que ele não para e traz sempre um alvorecer
simbólico de recomeço, mesmo na capital do Brasil, neste ano de 2017 ou 216S,
como preferem alguns.
Passo agora pelo Teatro Nacional,
fechado há anos, e vejo que ganhou um estacionamento completamente reformado em
frente à Sala Martins Pena. Na rodoviária, os moradores de rua dormem embaixo
do cruzamento dos eixos e os trabalhadores e artistas de sinal se multiplicam. Se
Lúcio Costa voltasse para ver o coração de seu projeto, 57 anos depois da
inauguração, será que encontraria nele valor e significado?
Sigo subindo e descendo a
Esplanada e procurando, em cada semáforo, encontrar algum sinal em meio a
tantas divagações, ampliadas pelo turbilhão de acontecimentos políticos e
pessoais dos últimos anos. Apesar de toda a frustração ao dirigir ali, neste
alvorecer de um sete de setembro muito diferente do que sonhei, mantenho-me
fiel à fé inquebrantável, como diria JK, dos pioneiros que construíram minha
amada Brasília, entre eles meus queridos avós, neste Planalto Central, onde
ipês amarelos, em sua majestade, saúdam, anualmente, a independência, alheios
ao desfile surreal (para dizer o mínimo) da política e de seus personagens.